"Fogo morto" - análise da obra de José Lins do Rego


"Fogo morto" - análise da obra de José Lins do Rego 


Obra-prima de José Lins do Rego, esse romance regionalista mostra o declínio dos engenhos de cana-de-açúcar nordestinos e traça amplo perfil das figuras decadentes que giravam em torno dessa atividade econômica.



Fogo Morto (1943) é o décimo romance de José Lins do Rego e foi considerado pela crítica desde o princípio como uma obra-prima. O texto gira em torno de três personagens – José Amaro, Luís César de Holanda Chacon e o capitão Vitorino Carneiro da Cunha (maior personagem não só do livro, como de toda a obra de Lins do Rego). É um romance essencialmente triste e com uma presença forte de loucura (uma das obsessões do autor, assim como morte e sexo). A história se desenrola em torno do engenho de Santa Fé.


Aparência e realidade

"Fogo Morto" é um romance de José Lins do Rego surgido no segundo período do modernismo, a fase regionalista. O período inicial do movimento havia sido marcado pela busca da identidade brasileira, num caminho trilhado, principalmente, pelo trabalho com a forma: a exploração da sintaxe e do vocabulário falado e utilizado no país.

Nas obras da fase regionalista, os autores focam essa mesma busca por meio do trabalho com o universo temático das regiões mais atrasadas do Brasil, sobretudo o interior do Norte e do Nordeste e, em menor escala, a Região Sul do país. Publicado em 1943, "Fogo Morto" é considerado a obra-prima de José Lins do Rego e ocupa lugar de destaque nesse período literário, ao lado de livros igualmente importantes como "Vidas Secas", de Graciliano Ramos, e "O Tempo e o Vento", de Erico Verissimo.


Comentário
“Fogo morto” é um drama humano organizado em três partes, daí a caracterização de estrutura triangular. Cada uma delas traz no título o nome da personagem central, nesta ordem: O mestre José Amaro, seleiro orgulhoso e revoltado; O engenho do “seu” Lula, senhor de engenho, decadente; O capitão Vitorino, “Papa-Rabo”, tipo quixotesco, defensor de fracos e oprimidos.  Cada uma das partes é dominada por uma personagem, a quem o narrador deixa falar, ou deixa mostrar-se, expressando a sua visão de mundo. Essa técnica é conhecida como onisciência multisseletiva, que permite revelar o mundo a partir do ponto de vista da personagem. A ação de Fogo morto se desenrola no Engenho Santa Fé, de Lula de Holanda Chacon, personagem que protagoniza a segunda parte do livro, como já dissemos. Na primeira parte, José Amaro é um velho seleiro, vivendo de favor nas terras do engenho Santa Fé, desde a época de seu pai.

Ao lado da mulher, Sinhá Velha, e de Marta, filha solteira e louca, o mestre Amaro (amargo) é um homem orgulhoso, machista e revoltado contra a ordem opressiva instituída pelos hábitos patriarcais. Na segunda parte, o narrador interrompe o relato dos fatos presentes e faz uma retrospectiva, localizando a ação do romance por volta do ano de 1848, quando chega à região o capitão Tomás Cabral de Melo, que ergue o engenho Santa Fé, casa-se com Dona Mariquinha e tem duas filhas. Uma delas, Amélia, casa-se com Lula de Holanda Chacon, primo do capitão. Ao morrer o capitão, o coronel Lula torna-se senhor de tudo. Na terceira parte, a ação gira em torno do capitão Vitorino, personagem que tenta defender o engenho, mas é agredido por cangaceiros e também por policiais. Vitorino é uma espécie de Quixote nordestino que alimenta esperanças na justiça e em uma virada política para os liberais. 

Fogo Morto (1943) foi o décimo romance e é a obra-prima de José Lins do Rego. Romance de feição realista revela o processo de mudanças sociais passados no Nordeste brasileiro, num período desde o Segundo Reinado até as primeiras décadas do século XX. Na verdade, apesar de sua estrutura literária sólida, Fogo Morto é um documento sociológico, que retrata o Nordeste e a oligarquia composta pelos senhores de engenho, ameaçada com a chegada do capital proveniente da industrialização. São engenhos de “fogo morto”, onde decai o patriarcalismo com suas tragédias humanas. O romance é a expressão de uma cultura, pois retrata o mundo da casa grande e o mundo da senzala com as consequências sociais do relacionamento de um com o outro. 

José Lins do Rego manifesta a tendência regionalista de nossa literatura e de nossa ficção entre 1930 e 1945, configurando a situação política, econômica e social do Brasil. As oligarquias açucareiras são dominadas pelas oligarquias cafeeiras, revelando um sistema político apoiado em acordos de interesses, mantidos por Estados que se sustentam nos coronéis dos municípios. 

Desponta assim um regionalismo novo, diferente do regionalismo romântico: o exotismo e o pitoresco não interessam mais. Surge agora um Brasil doente, com fome, escondido que estava sob uma capa de “civilizado”. Surgem os problemas mais graves: o baixo nível de vida, o banditismo, a superstição, uma população dominada por uma classe minoritária. Esse tipo de regionalismo crítico aparecerá também nas obras de Jorge Amado, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz. Convém frisar que José Lins do Rego poderia ser colocado sob a bandeira do Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre. 

O tema central de Fogo Morto é o desajuste das pessoas com a realidade resultante do declínio do escravismo nos engenhos nordestinos, nas primeiras décadas do século XX. Gira em torno de três personagens empolgantes, que são as três mais fortes personagens da sua criação ficcional. São elas: o mestre José Amaro, o artesão, o major Luís César de Holanda Chacon, o senhor de engenho decadente, e o capitão Vitorino Carneiro da Cunha, que é, sem dúvida, a maior personagem do livro e de todos os romances de José Lins do Rego. 

Linguagem

Quando José Lins do Rego publicou Fogo Morto, já não se discutia mais a necessidade de renovar a linguagem literária brasileira na ficção. O compromisso regionalista de José Lins do Rego é sobretudo de âmbito popular, e é exatamente a linguagem popular da Paraíba, isolada de influências externas, conservada em sua autenticidade regional, que o escritor utiliza. É a linguagem dos poetas populares, distribuída, agora, com um ritmo narrativo mais tradicional.

Quando Mário de Andrade, em Macunaíma, procurou usar uma língua comum a todas as regiões do Brasil, ele estava consciente de estar realizando um experimento e não de estar criando uma linguagem. Mário apenas mostrou o que poderia e deveria ser a experiência coletiva de um povo. José Lins traz para a literatura a estilização da linguagem regional com absoluta autenticidade espontânea e pura, colhida na própria fonte, sem influência erudita. Assim, podemos observar essa diretriz no romance Fogo Morto: o ritmo fraseológico remontando à mais antiga tradição dos contadores de histórias, que foram os únicos artistas populares do Nordeste. Ora, os romances do ciclo da cana-de-açúcar são, uns mais, outros menos, memorialistas. Essas memórias enraízam-se também na linguagem dos cantadores nordestinos, nessa literatura oral de que o romance de José Lins contém traços marcantes.  

Personagens

Cada uma das personagens principais representa, na verdade, uma classe social da população nordestina. As três personagens centrais estão envolvidas no cenário de miséria, doenças, e por uma politicagem e prepotência policial que defendem as minorias fortes e, como saída, o cangaço.

§  José Amaro - Trabalhador branco livre do Nordeste. Revela forte orgulho por ser branco e alta consciência de seu humano. Sabe que é explorado e não quer aceitar; porém não tem alternativa, salvo sua coragem e o apoio ao cangaço.

§  Coronel Lula de Holanda - Figura como representante da aristocracia arruinada dos engenhos. Possuí o orgulho despótico de um senhor feudal, mas perde o poder econômico. Refugia-se na religião, no amor ao passado, sem deixar de lado suas vaidades. Humilhado pela decadência e sofrendo as  pressões do cangaço, isola-se.

§  Vitorino Carneiro da Cunha - Representa o eterno opositor, corajoso, que aceita todas as lutas, um idealista em defesa dos mais fracos. Plebeu e ao mesmo tempo aristocrata pelo parentesco com o coronel José Paulino, outorga-se o título de capitão.

§  Frequentemente fazem-se comparações entre Vitorino e a figura de D. Quixote. De fato, ele tem de D. Quixote o idealismo, a luta pelos fracos e pela justiça (verdadeiro moinho de vento no Nordeste). De Sancho Pança, Vitorino tem sua figura exterior: gordo, alegre, espirituoso, sempre montado em seu burro velho, aceitando pacificamente as perseguições dos moleques, que o chamam de “Papa-Rabo”. Assim, Vitorino representaria um D. Quixote sertanejo, uma das maiores criações de José Lins do Rego.

§  Tenente Maurício - Desempenha o papel do opressor, comandando uma tropa de homens mais temíveis que os próprios cangaceiros.

§  Negro Passarinho - Escravo recém-libertado, tem o vício da bebida.

§  Coronel José Paulino - Senhor de engenho, poderoso e forte, oportunista politicamente.

§  O Cego Torquato - Elemento de ligação do cangaceiro Antônio Silvino.

§  Antônio Silvino - Cangaceiro, apoiado por mestre José Amaro.

§  Cabra Alípio - Extremamente devotado ao cangaço.

§  Adriana - Mulher de Vitorino.

§  Sinhá - Mulher de José Amaro.

§  D. Amélia - Mulher do coronel Lula de Holanda. Representante feminino da aristocracia feudal do Nordeste. Moça prendada, educada na cidade e, agora, presa à tristeza do sertão.
 

Enredo e estrutura da obra

Narrada em terceira pessoa, a obra é dividida em três partes que se ligam e se completam: O mestre José Amaro, O engenho do Seu Lula, e O Capitão Vitorino. Convém destacar o caráter lúdico da composição, já que o autor entrelaça as ações das personagens em todas as partes, revelando a decadência do Engenho Santa Fé e das famílias que lá moravam.

Três novelas interligadas, com a história pungente de três personagens trágicas. É um romance recheado de tristeza. A presença patética do romance é a de Vitorino Carneiro da Cunha, o Papa-Rabo, figura poderosa, inesquecível. É o romance cheio de loucura, que é uma das obsessões de José Lins, como a morte e o sexo. Em Fogo Morto análise e sexo se fundem. A obsessão angustiante do sexo é vencida pela análise da alma humana, naquele áspero mundo de fatalismo e misticismo.  O autor nos envolve com seu estilo lírico, as três personagens entrecruzam-se no espaço e no tempo narrativo. É uma narrativa multifacetada, com pluralidade de visões. É o imenso painel da sociedade rural do Nordeste, na transição da economia mercantil para a economia pré-capitalista. É uma espécie de síntese de toda a obra ficcional de José Lins do Rego.

 

Primeira parte

O mestre José Amaro - Artesão que lida com couro, mora nas terras do engenho Santa Fé, pertencente ao coronel Lula de Holanda Chacon. O fantasma da decadência econômica – mais sugerida do que descrita – ronda o seu trabalho. José Amaro é um homem amargurado e sofrido que rebela-se contra a prepotência dos senhores de engenho através de uma altivez que beira a arrogância. O desprezo que sente pelos “coronéis” leva-o a engajar-se como informante do bando de cangaceiros chefiado por Antônio Silvino. Assim, ele manifesta sua rejeição aos poderosos e à ordem constituída. Contudo, José Amaro tem o coração moldado pelos valores patriarcais dominantes. Por isso, maltrata sua esposa, Sinhá, e sobretudo sua filha, Marta que, com trinta anos, continua solteira e começa a ter agudas convulsões nervosas. Em um dos momentos mais dramáticos de todo o romance, José Amaro espanca longa e violentamente a filha em meio a uma dessas convulsões. A partir de então, Marta vive em estado de torpor, falando coisas sem nexo. Cada vez mais infeliz, o mestre seleiro caminha à noite pelas estradas próximas, ruminando as suas frustrações. O povo da região passa ver nele a encarnação de um lobisomem e o evita cada vez mais. O destino de José Amaro se decide apenas na terceira parte da obra. Sinhá e Marta o abandonam e o artesão percebe sua incapacidade de opor-se às classes dirigentes. Dirige então o seu temperamento violento contra si próprio e suicida-se com o mesmo instrumento que representava sua sobrevivência: a faca de cortar sola.

Segunda parte

O Engenho do Seu Lula - Senhor do engenho Santa Fé, que obtivera através do casamento com Amélia, filha do poderoso capitão Tomás Cabral de Melo, “seu” Lula é prepotente e mesquinho,  trata tão mal os escravos que estes, após a Abolição, abandonam em massa a propriedade rural Desinteressado das questões práticas, administra pessimamente o engenho, levando-o a rápido declínio. Face a incapacidade de seu proprietário, o Santa Fé, em dado momento, não produz mais açúcar. A sobrevivência familiar fica restrita à criação de galinhas e à produção de ovos, das quais se encarrega Amélia, a esposa do decrépito coronel.

No entanto, Lula de Holanda Chacon mantém a pose de grande senhor, pose traduzida no cabriolé (pequena carruagem de luxo) com que percorre as estradas, sem cumprimentar ninguém. Autoritário, impede que sua filha Nenén namore um rapaz de origem humilde. Esta, condenada a permanecer solteira, fecha-se sobre si própria e torna-se alvo de riso e deboche da vizinhança. Enquanto isso, alienado dos problemas econômicos que causam a derrocada de seu mundo, Lula entrega-se à práticas místicas, sob influência de Floripes, um negro que era seu afilhado. Como em outros momentos de Fogo morto, o desequilíbrio psíquico decorre do processo de decadência social. Cabe a mulher do senhor de engenho, a compreensão lúcida e triste do fim de tudo: Os galos começaram a cantar, o chocalho de um boi no curral batia como toque de sino. O negro saiu e D. Amélia ficou a olhar a noite...Agora ouvia uma cantoria fanhosa, um gemer que abafava o canto dos galos. Da casa de Macário saíam vozes, chorando uma morta. D. Amélia fechou a porta da cozinha. Dentro de sua casa uma coisa pior que a morte. Não havia vozes que amansassem as dores que andavam no coração de seu povo. Viu a réstia que vinha do quarto dos santos, da luz mortiça da lâmpada de azeite. Caiu nos pés de Deus, com o corpo mais doído que o de Lula, com a alma mais pesada que a de Nenén.

Acabara-se o Santa Fé. 

Terceira parte

O Capitão Vitorino - Personagem cujas origens o vinculam às famílias tradicionais da região açucareira, as quais já pertenceu socialmente, embora hoje seja apenas um pequeno proprietário que vive de maneira modesta. Nas duas primeira partes da obra, o capitão Vitorino é uma figura ridícula, quase grotesca, a ponto de ser denominado de Papa-Rabo pelos moleques. Na terceira parte, contudo, ele se eleva, assumindo a condição de um homem idealista e quixotesco. De Dom Quixote, Vitorino possui o sentido nobre dos gestos e uma percepção limitada da realidade, que o leva investir contra tudo aquilo que lhe parece injustiça, sem medir a força do inimigo, nem pesar as consequências de suas ações.. Contesta o poder absoluto dos senhores de engenho, da polícia militar e até dos cangaceiros, defendendo ideais éticos que parecem inviáveis na vida cotidiana da região. Acredita que, pelo poder do voto, possa instaurar uma ordem institucional num meio em que a única lei é o arbítrio dos latifundiários. Trata-se de um liberal humanista, mais preocupado com o uso e abuso da força do que propriamente com os desníveis sociais existentes na sociedade da cana-de-açúcar. Estas faces contraditórias da visão de mundo de Vitorino não lhe retiram a grandeza humana e literária. Ao contrário, fazem parte de sua personalidade multifacetada. Apesar de sua estrutura sólida, Fogo Morto é um documento sociológico, que retrata o Nordeste e a oligarquia composta pelos senhores de engenho, ameaçada com a chegada do capital proveniente da industrialização. São engenhos de "fogo morto", onde decai o patriarcalismo com suas tragédias humanas. Convém destacar o caráter lúdico da composição que o autor entrelaça as ações das personagens em as partes, revelando a decadência do Engenho Santa Fé e das famílias que lá moravam.

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